O apogeu árabo-andaluz do jardim - por Louis Albertini
Louis Albertini : Professor emérito de várias Universidades, da École Nationale Supérieure Agronómica de Toulouse, do Institut National Polytechnique de Toulouse, do qual foi Vice-Presidente, Diretor do Departamento de Proteção de Culturas e do Laboratório de Investigação em Patologia Vegetal. Intervém aqui enquanto autor do livro Essor de l'Agriculture en al-Andalus Xe - XIVe siècle : Performances des agronomes arabo-andalous – Ibérie arabe, ed. L'Harmattan, 2013, obra notável de síntese sobre os últimos 35 anos de investigação sobre a agronomia da Idade Média, na Península Ibérica. É o maior especialista de jardins deste apogeu da agronomia que marcou, para sempre, o jardim português.
Louis Albertini pensa que a agricultura ajardinada que a época do Al Ândalus desenvolveu entre nós é um modelo para uma jardinagem atual durável.
Traduzido para português pela Profª Doutora Adriana Nogueira.
Version intégrale de la publication ed lOuis albertini pour la revue "Jardins" de septembre 2014 consacrée à la singularité des jardins portugais
Nas civilizações antigas, o homem soube, por necessidade, desenvolver uma agricultura ajardinada próxima da sua habitação, para sua alimentação e, por vezes, para usufruir do encanto e da estética de um jardim bem organizado.
Assim, na América, os Espanhóis que descobrem, à chegada, numerosos legumes e frutos aprimorados por mais de dez mil anos de cultura, são especialmente surpreendidos pela exploração que os Astecas fazem de jardins flutuantes, os chinampas, criados sobre os pântanos e rodeados de canais, cuja espantosa fertilidade, traduzida por 5 a 7 colheitas anuais, se devia à engenhosidade dos métodos de compostagem e de palhagem e ao valor fertilizante da lama que revestia o pântano.
Na China, há sete ou oito mil anos, já se domina a cultura dos cereais (milho-painço e arroz), das árvores de fruto e dos legumes, sabendo manter a fertilidade dos solos, graças a trabalhos bem conduzidos (lavouras, cultivo de superfície), a uma fertilização adaptada, designadamente através do uso da adubação verde, e praticando, por sistema, a irrigação, que se foi sofisticando com o tempo.
Por seu lado, o Egito antigo pratica uma jardinagem cuidada, que se enriquece progressivamente de plantas e de técnicas agrícolas orientais, como as da irrigação, especialmente em resultado de conquistas como as de Tutmés III (por volta de 1500 a.C.), que ocupa, por mais de cem anos, a Palestina e a Síria até ao Eufrates. Naquela época, foram escavados canais e reservatórios para irrigar os canteiros de culturas separadas por diques: deste modo, faziam uma rega cuidadosa e eficiente do precioso líquido saído do Nilo e das suas enchentes. Em particular, o templo de Ámon, em Carnaque, permite apreciar a riqueza de 36 jardins do Egito, com árvores de fruto: balanites, coqueiros, tamareiras, sicómoros[1], romãzeiras, jujubeiras[2], oliveiras, macieiras e videiras. Os legumes também não ficam de lado: alho, cebola, rabanete, alface, fava e grão-de-bico. O jardim árabe manterá a marca do jardim egípcio.
Na Grécia antiga, o jardim rural e o jardim citadino, vedados para sua própria proteção, têm uma produção muito rentável. Já no século VIII a.C., Homero descreve, com admiração, um jardim citadino do Metaponto, um verdadeiro pomar com uma superfície de um meio hectare: «Fora do pátio, começando junto às portas estendia-se/ o enorme pomar, com uma sebe de cada um dos lados./ Nele crescem altas árvores, muito frondosas,/pereiras, romãzeiras e macieiras de frutos brilhantes;/figueiras que davam figos doces e viçosas oliveiras./ Destas árvores não murcha o fruto, nem deixa de crescer/ no inverno nem no verão, mas dura todo o ano.»[3] A vinha também prospera: «maravilhosa abundância./ Há duas nascentes de água: uma espalha-se por todo/ o jardim;»[4]. Em muitos sítios, o jardim grego é uma estrutura agrícola com múltiplas utilizações; fornece um complemento substancial a uma agricultura de sequeiro que, baseada nos cereais, na vinha, na oliveira e em outras árvores de fruto, se mostra muito pouco produtiva, devido à fraca qualidade das terras em geral.
É, por exemplo, o caso da colónia grega de Chipre, onde, como sublinha Paul Faure, «nas cidades muralhadas, as hortas, os pomares, os espaços verdes [irrigados] lembram esta carência, esta necessidade, para os colonos, de se manterem em contacto com a terra mãe».
Moncarapacho irrigation
Na Antiguidade romana, na península italiana, a exploração do hortus completa, como na Grécia, a produção da tradicional agricultura de sequeiro. Na época de Catão (séc. III-II a.C.), a policultura italiana transforma-se, passando de uma agricultura de subsistência à exploração de grande domínios, geridos pelos proprietários, auxiliados por numerosos trabalhadores agrícolas, tanto escravos como homens livres.
Este novo modo de gestão permite o desenvolvimento da oleicultura, da viticultura, da arboricultura e da horticultura, a partir do momento em que estas culturas prevalecem sobre a cerealicultura que, mesmo assim, se mantém em proporções apreciáveis. Dois séculos mais tarde, Columela, no sul de Espanha, e Plínio, o Velho, na Campânia, sabem acentuar o interesse do jardim, do pomar e da vinha, estes últimos podendo ser organizados de uma forma ajardinada. Plínio, em particular, chama a atenção para o facto de a coltura promiscua, criação romana, ser um modo de jardinagem em parcelas planas ou em terraços: pode-se conduzir até lá, devido a uma irrigação de água tirada de um rio ou de um poço, lado a lado com árvores de fruto (tais como macieiras e pereiras, antigos companheiros do homem mediterrâneo), vinhas baixas ou, pelo contrário, em estacas altas – também chamadas latadas ou ramadas–, e plantas herbáceas (cereais, hortaliças); as raízes destas diferentes culturas cavam, portanto, o solo a diferentes níveis, e os três estratos de vegetação – herbáceo, arbustivo e arbóreo – podem ocupar harmoniosamente o espaço aéreo, se a orientação das diferentes plantações for bem avaliada por um jardineiro experiente.
E nos jardins bem cuidados, são cultivados, naquela época, uma primeira escolha de couves, de aspargos, de chicórias e de alho-porro, sem esquecer os nabos, as abóboras, os pepinos e a delicada cidra.
OS JARDINS NO AL-ÂNDALUS (Ibéria árabe)
No al-Ândalus, entre os séculos VIII e XV, os agrónomos árabo-andaluzes vão fazer progredir significativamente, graças ao seu trabalho experimental e às suas inovações, todas as técnicas agrícolas herdadas do passado greco-latino e, sobretudo, mesopotâmico, em particular a hidráulica rural oriental.
Assim, além das produções agrícolas tradicionais (trigo, oliveira, videira), foi instalada a agricultura irrigada estival, de inspiração mesopotâmica – com a exploração de plantas de regiões quentes, tais como o arroz, a cana-de-açúcar, os citrinos, a tamareira e várias espécies hortícolas –, que foram introduzidas graças à perícia dos homens do Renascimento – que o eram já os agrónomos andaluzes. E em muitos lugares, dos mais favorecidos e acessíveis da Espanha e do Portugal árabes, foi instituída uma agricultura ajardinada de elevado desempenho, para um funcionamento contínuo e otimizado, composta por pomares e hortas ou mistas, desde bem pequenas a muito vastas, graças a uma irrigação racional durante o verão e a uma adequada adubagem.
A água para os jardins vem de rios e ribeiros, de nascentes e de lençóis freáticos, alguns deles profundos; a jardinagem irrigada está sujeita à gravidade simples, permitindo uma corrente de água apta a fornecer mini-canais, sem, contudo, atingir a energia capaz de causar danos estruturais de tipo erosivo.
A irrigação direta por gravidade, a partir de nascentes, de rios profundos (altos?) e barragens, é muito limitada; normalmente, a água que abastece os jardins provém de rios descendentes ou águas subterrâneas (lençol freático): a água deve, então, ser recolhida ou extraída e elevada para permitir uma rega por gravidade, a partir de canais (ou saqiyas) que fazem parte de instalações hidráulicas próprias, nas quais os árabes da Andaluzia detêm uma mestria proveniente de uma longa tradição oriental.
Minas Ribeira do Seissal de Cima
Instalações hidráulicas
Para começar, evoquemos a saniya, pequena nora andaluza descrita pelo agrónomo árabo-andaluz Abu I-Khayr (séc. XI), com a sua corrente de alcatruzes que mergulham num poço e voltam a sair, graças a um sistema de rodas engrenadas, movido por tração animal.
O sistema saniya-poços, instalado em grande número, quase exclusivamente na Ibéria ocupada pelos árabes (Glick, 1996), é o meio mais comummente usado para a irrigação dos jardins andaluzes e permitiu a numerosas famílias de camponeses passar de uma agricultura de sequeiro, de subsistência, para uma agricultura de mercado muito mais eficaz devido à benéfica irrigação proveniente deste simples e prático aparelho.
As zonas da Ciudad Real e do levante espanhol estão bastantes providas, mas em outras regiões, como o l'al-Gharb al-Ândalus (Portugal árabe), também fazia parte do equipamento de jardins.
Outro aparelho de elevação: a nora (nâ'ûra),constituída por uma grande roda hidráulica com alcatruzes, acionada pela corrente de um rio ou, mais raramente, de um canal, graças às pás distribuídas pela sua circunferência, que a água empurra perpendicularmente.
Tal como a saniya, a noraandaluza é uma importação do Médio Oriente, pois encontramos aí modelos antigos movidos pelas águas do Eufrates e do Orontes. E tal como no oriente, estas noras de corrente[5] frequentemente instaladas à beira de um rio importante, como o Ebro, o Guadalquivir ou o Tejo, serviam, essencialmente, para abastecer as cidades ou para irrigar os pomares, os jardins e as hortas periurbanas, a acreditar no geógrafo al-Himyarî (séc. XVI). E, segundo Glick (2003), as noras fluviais existiam em grande número no Portugal islâmico, por exemplo, junto ao Tejo, na região de Santarém.
No al-Ândalus, para fazer subir a água de uma lagoa ou de um rio, era utilizado um instrumento elevatório, basculante, com pouca eficácia, chamado picota[6] (shadouf), que já figurava nos baixos-relevos do antigo Egito e que ainda é muito usado pelos camponeses (fellahin) do Egito contemporâneo. Muito provavelmente conhecido no Mediterrâneo ocidental na época romana, este tipo de monta-cargas com contrapeso foi utilizado no sul da Península Ibérica, como o provam os vestígios arqueológicos.
Quando as águas de superfície são insuficientes, pode-se sempre inspirar na técnica iraniana para fazer captações subterrâneas através de galerias de drenagem, desde que o lençol freático seja pouco profundo, sobre um substrato que facilite o escoamento subterrâneo. A galeria de drenagem, chamada qanat no Próximo-Oriente, khettara em Marrocos e foggara nos oásis saarianos, resulta da perfuração horizontal de tipo mineira, ao longo de vários quilómetros; é servida por poços de serviço, espaçados entre 20 e 50 metros, permitindo a marcação da localização subterrânea da galeria, graças ao alinhamento das respetivas aberturas na superfície.
Os mais antigos qanats conhecidos têm cerca de 3000 anos e estão situados, no Irão, perto da cidade de Uhlu, a nordeste de Tabriz.
Tanto o Irão como a Síria (por exemplo, Palmira) são, desde tempos antigos, atravessados por numerosos qanats. A Mesopotâmia, o Egito, a Líbia, a Anatólia e a Tunísia apetrecharam-se de múltiplos qanats um pouco mais tarde na Antiguidade.
No Mediterrâneo ocidental, é numa Ibéria muçulmana que os Omíadas constituíram os primeiros qanats no século X, em Guadalajara e em Madrid, o que vem a permitir, graças à água disponível, o desenvolvimento da futura capital de Espanha e dos seus jardins. Lá longe, no al-Ândalus, uma parte importante da irrigação dos pomares e jardins acontece por meio das galerias de drenagem normais ou rudimentares, como nas regiões de Córdova e de Cádis, em Maiorca e no al-Gharb al-Ândalus (o Portugal muçulmano).
Na mesma época, em Marrocos, são criados numerosas khettaras, quando se fundou Marraquexe, e em Tafilalet, para irrigar os oásis.
Saniya Cercal Alentejo
Os jardins de prestígio no al-Ândalus e o seu interesse para a promoção das culturas introduzidas pelos Árabes.
A aclimatação de novas espécies vegetais a serem introduzidas necessitou de ser testada e verificada antes de serem plantadas nas zonas climáticas do al-Ândalus aptas a valorizá-las.
A criação de jardins de ensaio e botânicos, em alguns casos até precocemente decidida pelas autoridades árabes nas imediações dos seus palácios ou das suas casas de campo, permite o estudo do comportamento das novas espécies destinadas quer à agricultura quer à terapêutica. Foram testados, em particular, o nível e a qualidade de produção, e algumas espécies, tais como a cânfora, a pimenteira, o incenso e a canela, desiludiram as esperanças de uma boa exploração.
Mas para a maior parte das plantas introduzidas, o tão esperado sucesso foi alcançado, graças aos conhecimentos agrotécnicos e à prática do aperfeiçoamento das plantas nestes jardins, através da triagem de populações e seleções de espécies novas, bem adaptadas, tanto de árvores de citrinos, como a cidreira, a laranjeira-amarga ou o limoeiro, como de vegetais, como as beringelas ou os espinafres.
A utilização e adaptação de técnicas de adubação adequadas, provenientes da Agricultura Nabateana (1) também contribuiu para isso. E a volta que deu, no al-Ândalus, a agricultura irrigada ou agricultura de jardim – já bem desenvolvida na Mesopotâmia – fez-se por imitação destes jardins de soberanos que serviram de modelos e de centros de difusão das novas culturas e das inovações agronómicas.
Alguns jardins marcaram a história da agricultura na Ibéria árabe.
Em meados do século VIII, o emir Abd ar-Rahmân I (756-788), sobrevivente do massacre dos Omíadas damascenos, manda construir no seu palácio de ar-Ruzafâ[7], a noroeste de Córdova, o primeiro jardim botânico andaluz, em memória da sua Síria. Será, portanto, ele o primeiro a introduzir no al-Ândalus as sementes selecionadas e as plantas das regiões quentes e tropicais que vai tentar, na maior parte das vezes com sucesso, aclimatar no seu jardim, antes de as instalar nos espaços adequados do al-Ândalus.
São, assim, promovidas as culturas de tamareiras e de uma variedade de romãzeira importada da Síria, chamada safarî. O seu descendente Abd ar-Rahmân III, emir de Córdova, que veio a ser califa (929-961), criou, na sua cidade áulica de Medina Al-Zahr, situada a oeste de Córdova, um imenso jardim botânico ornamental e experimental, com a função de, nomeadamente, aperfeiçoar, através da aclimatação e de cuidados de manutenção, o comportamento e o desempenho das novas espécies vindas do Magrebe e do Oriente.
Mais tarde, na época do florescimento das Taifas, criaram-se outra vez jardins reais, sumptuosos. É exemplo a Horta do Rei de Toledo, concebida por Ibn Wâfid (1007-1074), médico que se tornou agrónomo, a quem o soberano de Toledo, al-Ma’mun, encarrega de instalar e de dirigir na Várzea do Tejo, a montante da ponte de Alcântara: é aí que, influenciado pelos seus estudos de medicina e pela curiosidade experimental herdada de Galeno, Ibn Wâfid se entrega a diversas tentativas de aclimatação e mesmo de fecundação artificial.
Ou também a Horta do Rei de Sevilha, que o soberano al-Mu'tamid criou perto do seu palácio, confiando a responsabilidade técnica e botânica ao sevilhano Abû al-Khayr, que beneficia da experiência do toledano Ibn Bassâl, discípulo de Ibn Wâfid e refugiado em Sevilha depois de 1085.
Por fim, podemos evocar o agradável jardim ornamental e de ensaio, criado em 1066 pelo soberano Ibn al-Sumâdih, na magnífica Horta al-Sumadihiyya (Taifa de Almeria), graças à água desviada de uma mesquita; deste modo, com o apoio e competência do agrónomo granadino M. al-Tighnarî, que participou neste sucesso, tanto experimental como artístico, puderam ser aclimatadas, à volta de um lago, algumas espécies tropicais, como a bananeira e a cana-de-açúcar, na atmosfera quente da costa meridional de Espanha (Trillo San José, 2004).
Sublinhamos ainda que, no século XI, depois de Toledo, Sevilha tornou-se numa grande capital agrícola e num centro agronómico sem igual na Idade Média; este centro apoia-se num vasto território, o Aljarafe (al-Sharaf), próximo do mar e cobrindo 1650 km2 entre os rios Guadalquivir e Guadiana.
Aproveitando-se destas vantajosas potencialidades agrícolas e humanas que ilustres agrónomos sabem desenvolver, a Aljarafe adquire uma grande notoriedade em experimentação agronómica e em aclimatação de plantas importadas: é, a mesmo tempo, um mosaico de jardins de ensaios e uma imensa zona de exploração. E a grande maioria desses ensaios e observações pessoais consignadas nas obras dos agrónomos sevilhanos Ibn Hajjâj al-Ichbîlî (século XI) e Ibn al-'Awwâm (século XII) proveem de parcelas ajardinadas de Aljarafe. Em particular, os testes de aclimatação de espécies introduzidas neste sítio vão permitir a promoção da cultura da bananeira, da cana-de-açúcar, do algodoeiro, da romãzeira, da hena, da laranjeira-amarga, da tamareira, obtidas por fecundação artificial, de arroz e de açafrão: um tal desempenho obtido graças ao talento destes dois sábios agrónomos merece ser exaltada.
Notemos que, no momento em que o califado de Córdova está no seu apogeu, aparece um preciso documento, o Calendário de Córdova (961), que lista as espécies herbáceas e arbóreas cultivadas, indicando as datas marcantes da sua produção e dá algum espaço à agricultura jardinada, ou seja, a horticultura e a fruticultura, que estão muitas vezes associadas; um grande número de plantas hortícolas são tomadas em consideração, entre elas a cebola, a couve-flor, a beringela, sem contar com as plantas aromáticas e condimentares, tais como o manjericão, o funcho, o anis, a mostarda, o agrião e algumas flores, como o goivo-amarelo e o narciso; entre as árvores de fruto, para além das tradicionais macieiras, pereiras e figueiras, já são introduzidas, nesta época, que precede o grande desenvolvimento agronómico dos séculos XI e XII, a romãzeira síria, o pistacheiro, a amoreira… A irrigação precocemente bem instalada permitiu, desde logo, o crescimento de uma jardinagem diversificada e sofisticada.
Criação e gestão de jardins no al-Ândalus
Enquanto na Idade Média, e até mais tarde, o noroeste mediterrânico parecia pouco inclinado para o dinamismo e a inovação agrícolas, os agrónomos árabo-andaluzes dos séculos XI e XII, tomando em consideração os dados das tradições agrícolas greco-latina e, sobretudo, mesopotâmica, da Antiguidade e da Alta Idade Média, aproveitam a sua grande experiência pessoal e os truques dos fellahin berberes, vindos do Magrebe, para desenvolver uma horticultura e uma fruticultura ajardinadas, baseadas numa irrigação racional.
E convém sublinhar que durante o período de maior fulgor da escola agronómica do al-Ândalus – a das primeiras Taifas, reinos que sucederam à abolição do califado de Córdova, em 103 – são redigidos, entre 1074 e 1120, nada menos que cinco importantes tratados de agronomia, dos quais os mais significativos para a jardinagem são os dos sevilhanos Ibn Hajjâj al-Ichbîlî e Abû l-Khayr, o Arboricultor, ainda antes do fim do século XII, quando o mais célebre agrónomo andaluz, Ibn al-'Awwâm, de Sevilha, escreve a sua célebre obra de referência, O Livro da Agricultura, sob a dinastia almóada; nesta enciclopédia que abarca, sem nenhuma omissão digna de nota, o conjunto da agronomia mediterrânica do seu tempo, o autor informa-nos, em especial e com uma grande habilidade, sobre o modo como devem ser criados, estruturados e geridos uma horta e um pomar irrigados, referindo-se, nomeadamente, aos escritos dos autores orientais, tais como os de Vindonius Anatolius de Beirute (séculos IV-V) e Kastos, e aos trabalhos dos seus predecessores Ibn Hajjâj e Abû l-Khayr. Vejamos alguns exemplos.
Assim, sobre os solos destinados às hortas, Ibn al-'Awwâm aconselha, seguindo Abû l-Khayr, que se evite, se possível, a terra dura, sujeita a fender-se e demasiado sequiosa de água, bem como a terra fraca, que amolece demasiado no inverno, sendo preferível a areia e a terra estrumada.
No que diz respeito à adubação, concorda com Ibn Hajjâj, quando indique que todo o tipo de vegetais ganham em beleza, tamanho, qualidade e sabor, se, quando os transplantamos, cobrirmos o pé de esterco de vaca, [pois]… é evidente que os vegetais, para além da água, gostam também muito dos fertilizantes. E, dos fertilizantes, o melhor é o excremento dos pombos que, em doses pequenas, são capazes de melhorar o cultivo dos vegetais ao afastar, tal como o fazem as cinzas, escaravelhos e outros insetos.
A irrigação é essencial na horta árabo-andaluza: a partir do canal de irrigação ou acéquia, a água é distribuída por mini-canais ou ramais que, no seu percurso, alimentam as parcelas, chamadas compartimentos ou ladrilhos, geralmente, geralmente de pequenas dimensões no al-Ândalus, cerca de 6 metros por 2. Visto que, frequentemente, a irrigação é feita a partir de lençóis de água, o solo dos ladrilhos deve estar perfeitamente aplanado através de um aparelho simples, aconselhado por Abû l-Khayr – o nivelador ou ma'rifal – e apresentar uma inclinação suficiente (0,5%, segundo Ibn al-'Awwâm) para assegurar um bom escoamento de águas, o excesso de água sendo levado pelos canais de escoamento.
E além da água de irrigação em plena terra, que os vegetais absorvem através das suas raízes, convém, para Ibn al-'Awwâm, regar à noite, durante o verão, os ramos e as folhas, com um regador, para os proteger do calor da estação e da sua ação dessecante; deste modo, conservam a frescura e a humidade durante toda a noite e até ao nascer do sil… e é a água do céu, devida à sua leveza e equilíbrio que é a mais proveitosa para as plantas.
Quanto aos pomares ajardinados, as recomendações de Ibn al-'Awwâm dizem respeito à sua localização que deve ser, por razões práticas, próxima da habitação do senhor ou do lavrador e ser facilmente abastecida de água, se possível a partir de um ponto elevado; incidem também sobre a distribuição das diferentes espécies de árvores que se vão dispor: será tido em conta o vigor das espécies, bem como a natureza do terreno e a sua força para determinar o espaçamento adequado e a condução (ou poda) das árvores. Os agrónomos árabo-andaluzes são peritos em multiplicação vegetativa das árvores de fruto: estaquia, mergulhia, enxertia são praticadas com habilidade, além das mudas – para algumas espécies – que dão menos resultado; e ao organizar um jardim, é necessário, dizem, agrupar as árvores por espécies análogas, procurando evitar que o que é delicado esteja junto do que se desenvolve muito, pois estas, pelo seu tamanho, criam uma sombra que, ao cobrirem aquelas, prejudicam-nas e fazem-nas perder todo o seu viço.
Concretamente, coloca-se a norte as árvores que projetam uma sombra maior e as que são espinhosas: jujubeiras, pinheiros, ulmeiros, salgueiros e outras (que se alinham) junto aos muros da vedação.
Segundo Abûl-Khayr, os jardins [arborizados] devem, sempre que possível, estar expostos a levante, e deve-se evitar associar árvores de folhas caducas àquelas que as conservam; estas (loureiro, murta, cidreira e outros citrinos, medronheiro,…) plantam-se na proximidade de charcos e tanques. O pinheiro coloca-se onde houver necessidade de uma sombra densa, e o cipreste dispõe-se ao longo das alamedas; na proximidade de poços, pode-se plantar ulmeiros, salgueiros, sorveiras, romãzeiras selvagens. Às vezes, fixa-se, nas árvores de maior porte, para deleite, pérgulas ou caramanchões; deste modo, a água que fica na sua sombra é mais fresca, o que a torna melhor para a irrigação na estação quente.
Nos grandes pomares, extensões de jardins, as árvores deverão ser, segundo prescreve d'Abû l-Khayr, dispostas em função do seu período de frutificação, por razões práticas; no que respeita à cidreira, deve-se protegê-la dos ventos do norte e do oeste, que lhe fazem mal, e, pelo contrário, expô-la ao vento do sul.
Os jardins no al-Gharb al- Ândalus (Portugal árabe).
A ocupação muçulmana não conheceu a fronteira hispano-portuguesa como bem o mostram os limites dos reinos das Taifas, que assumem o controlo do califado de Córdova até ao seu colapso, em 1031.
Assim, a imensa Taifa de Badajoz estende-se por mais de metade do Portugal atual, incluindo Coimbra e Lisboa; a Taifa de Sevilha controla uma ponta a sul de Portugal, tal como a de Huelva; apenas as taifas de Silves, Faro e Mértola estão sob gestão árabo-portuguesa.
E durante as primeiras Taifas (1035-1090) e até um pouco mais tarde, relembremos que o desenvolvimento agrícola é brilhante, com a aplicação das técnicas árabo-mesopotâmicas descritas pelos agrónomos de Sevilha. Além disso, três geógrafos árabes, al-Râzî, al-Idrisî et al-Himyarî, que referem o estado da agricultura andaluza, informam-nos sobre a localização e a atividade dos centros agrícolas portugueses, com algumas indicações sobre os jardins, os pomares e as hortas irrigadas.
O mais antigo, al-Râzî (século X), situa as principais zonas de jardinagem à volta de Coimbra – sobretudo com os seus numerosos pomares nas proximidades do rio Mondego – na Exitânia, a atual Idanha-a-Velha (próxima de Alcântara), conhecida pela sua vinha e solos férteis propícios à horticultura: nas zonas abaixo do rio Tejo, al-Râzî destaca os distritos de Santarém e de Lisboa, que beneficiam das cheias do Tejo, que inundam a planície entre estas duas localidades, para produzir em sete semanas belas colheitas precoces de trigo, apesar de tardiamente semeadas!
E nestes territórios férteis, a horticultura, a arboricultura e a apicultura dão-se muito bem e os frutos e legumes são magníficos. Na região de Ocsonoba (atual Faro), bem a sul, com as suas zonas planas e a sua montanha, encontramos belos jardins irrigados e fontes de água clara. Al-Râzî observa também que a região de Beja é propícia ao cultivo e à pecuária e que há aí muitas colmeias, pois há nessa zona flores excelentes para as abelhas, o que subentende a presença de pomares.
Duzentos anos mais tarde, al-Idrisî (1100-1165) salienta, como al-Râzî, o interesse agrícola da bacia a que chamou terra de Balâta, entre Lisboa e Santarém, inundada pelas cheias do Tejo e promovendo, assim, o aparecimento de um trigo precoce de alto rendimento (cerca de 100/1); por seu lado, indica que há [em Santarém] muitos jardins que produzem frutos e vegetais de todas as espécies.
No início do século XIV, o geógrafo al-Himyarî, que considera a fertilidade do al-Ândalus comparável à da Síria, dá conta das vantagens de mais dois sítios, a zona de Sintra, interessante pelas suas culturas de macieiras e de pereiras, e a zona de Silves, pelos seus moinhos de água, pelas suas pastagens e, sobretudo, apelas macieiras que aí crescem em grande número, produzindo frutos extraordinários, que exalam um perfume semelhante ao das malvas.
Al-Himyarî salienta que os habitantes de Silves, assim como os das aldeias vizinhas, são árabes oriundos do Iémen (que sabem de jardinagem e de construção de terraços de cultivo). Chama também a atenção para o facto do solo de Faro ser muito fértil, portanto, adequado à horticultura e à fruticultura, e que, além disso, florescem as figueiras e a vinha; salienta também que, em Coimbra, há muitas vinhas, macieiras e cerejeiras muito frondosas, sendo que Coimbra é também um centro de transformação agrícola equipado com moinhos de água no rio Mondego. Al-Himyarî menciona ainda al-Kasr (atual Alcácer do Sal) pela criação de gado e pela sua atividade apícola.
CONCLUSÃO
Na agricultura irrigada instalada pelos berberes árabes do al-Ândalus, é claro que o jardim-pomar e o jardim-horta ocupam um lugar de destaque à volta das cidades e dos aglomerados rurais; em particular, entre as pessoas mais importantes, o jardim ornamental está presente, com a sua magnificência, pois associa o prestígio à beleza.
Nos grandes centros culturais que foram Toledo, Sevilha, Córdova, Granada, Almeria, as autoridades mandaram os seus hábeis agrónomos construir, como vimos, grandes jardins, espaços de lazer e de experimentação, onde foi testada a aclimatação de numerosas espécies de regiões quentes, provenientes principalmente do oriente, depois de terem passado pelo Próximo-Oriente árabe.
O jardim árabo-andaluz adapta-se a todas as situações; está, claro, fechado, para evitar que entre qualquer tipo de animal, assim como a curiosidade de pessoas indesejadas, mas, por vezes, são desenhadas ou construídas em trompe-l'oeil portas falsas no muro circundante, podendo criar, assim, uma impressão de abertura.
Planos de água, plantas hortícolas, flores e árvores de fruto partilham o espaço que divide passagens e pequenos canais de abastecimento de água.
Em terreno inclinado, a instalação em terraços imbricados, ladeados por muretes com pequenos tanques de retenção de água, faz alternar os talhões de árvores de fruto, como os citrinos, e os talhões hortícolas (com novos vegetais: beringela, espinafre, couve-flor,…); o acesso aos diferentes talhões fazia-se através de escadas ou de planos inclinados: os terraços ajardinados da atual Banyalbufar, em Maiorca, são um testemunho evocador significativo do que era, em muitos lugares, o jardim do al-Ândalus, bem concebido, estético, produtivo e corretamente gerido com o seu depósito de água.
Um belo exemplo para a época atual!
E o al-Gharb al-Ândalus, nomeadamente em Coimbra, Santarém, Lisboa, Faro…, dedicou-se à jardinagem e à fruticultura, facilitadas pelo abastecimento de água de rios, fontes, poços ou de galerias de drenagem.
No al-Ândalus, quando a agricultura conhece um crescimento sem precedentes no ocidente mediterrânico, o jardim árabo-andaluz, inspirado no jardim mesopotâmico e beneficiando da experiência comprovada dos sábios de Toledo e de Sevilha, também conheceu um apogeu, tanto no plano agrícola como no do bem-estar e da estética.
A atual arte de jardins deve-se, enormemente, ao talento e à inventividade dos agrónomos árabo-andaluzes
Orientações bibliográficas
Agrónomos árabo-andaluzes:
** Ibn Hajjâj al-Ichbîlî (séc. XI), Le Livre convaincant sur l'agriculture, Jirâr e Abou Safiyya, Amman, 1982 et 1988.
** Abû l-Khayr (séc. XI), Tratado de agricultura, trad. espanhola de J.M. Carabaza, MAE/AECI, Madrid, 1991.
** Ibn al-'Awwâm (fim do séc. XII), Le Livre de l'agriculture, trad. francesa de J.-J. Clément-Mullet, 2 vol., Paris, 1864-1867, e reed. Actes Sud, Arles, 2000.
Géografos árabes:
** Al-Razi (séc. X), La description de l'Espagne d'Ahmad al-Râzî, estudo de E. Lévi-Provençal, Al-Andalus, XVIII, p. 51-108, 1953.
** Al-Idrisi (1100-1165), Description de l'Afrique et de l'Espagne, trad. Dozy de Goeje, Leiden, 1866.
** Al-Himyari (séc. XIV), estudo de E. Lévi-Provençal: La Péninsule Ibérique au Moyen Âge, publ. Fondation de Goeje, n° XII, 1938.
Outras referências a realçar na obra de Louis Albertini, Essor de l'Agriculture en al-Andalus (Ibérie arabe) – Xe - XIVe siècle – Performances des agronomes arabo-andalous, édit. L'Harmattan, 2013.
(1) Agricultura Nabateana: livro de agronomia mesopotâmica, escrito em siríaco antes do séc. V, por diversos autores, e traduzido em árabe por Ibn Wahshiyah, chefe da exploração agrícola em Koufa, no Iraque.
(2) Romãzeira síria: cultivada atualmente no Algarve e chamada «Asseria» ou «Assária».
[1] Vulgarmente chamados de figueiras-do faraó. (NT)
[2] Conhecidas também como açofeifeiras. (NT)
[3] Odisseia, 7, 112-118. Tradução de Frederico Lourenço (Livros Cotovia, 2003). (NT)
[4] Idem, ibidem, vv. 128-130. (NT)
[5] Ou roda persa. (N.T.)
[6] Ou cegonha, apenas para referir os nomes mais comuns (N.T.)
[7] Atual Arruzafa. (N.T)
c'est un três bel article qui fait plaisir à lire et qui devrait être enseigné dans les écoles! car de nos jours la qualité de "science" est atribuée à celui qui fait le plus grand usage de produits chimiques qui à grands pas finissent par laisser les sols sans vie
ou est-ce que je me trompe?
Rédigé par : Angie | 17/07/2014 à 21:20
oui Louis Albertini termine son livre en disant que le modèle tradionnel apporté par les arabo-syriens est plein d'enseignements pour une agriculture jardinée durable
et le le crois, même s'il est complétement à l'inverse des pratiques actuelle
Rédigé par : jp | 18/07/2014 à 10:07
Il ne me reste plus qu'à laisser juste un coucou amical ... lol !
Rédigé par : JO TOURTIT | 05/08/2014 à 17:50
Beau pensum, certes, bien que débité en trois parties (par exemple) il eût paru plus digeste à un béotien de mon espèce...
Rédigé par : Phil' | 08/08/2014 à 05:26